É “o este” ou “o leste”? Porquê?
No dia de Todos os Santos, consegui ir ao lançamento do livro ASSIM NA TERRA COMO NO CÉU do poeta José Agostinho Baptista. Desconhecia o sítio e o restaurante O Moinho. Indo de propósito para ali, fui do sol do Funchal para um chuvisco outonal e uma aragem bastante fresca, num entardecer sabático. Pareceram-me elementos de um cenário propício a uma vivência poética, em dia de recordar as pessoas amadas que faleceram. Prefiro o eufemismo “partir”: que partiram. Do lugar onde estava, enquanto ouvia as apresentações de Luís Rocha e Marcelino de Castro, via, de um lado, a paisagem inclinada, indo da terra ao mar e, de um outro, um pedacinho de serra. A determinado momento, senti o vento, que marcou, discretamente, presença. Saí dali a pensar em vários assuntos: a vida e a morte, a terra e o céu, a família e os amigos, a poesia e a escrita, a palavra e o silêncio, o vento e… os nomes dos pontos cardeais, em especial “este”. Diz-se “o leste” ou “o este”? Reflectir sobre tudo, incluindo detalhes linguísticos como este, é um exercício que aprecio bastante porque coloca problemas que continuarei, aqui, a propor. Isto não significa que saiba tudo ou que o assunto fique, na íntegra, resolvido. Resumidamente, esta questão será do domínio da Etimologia, da Comunicação e da Fonética. Terá sido para evitar equívocos, na audição, que surgiu “leste”, uma vez que o termo etimológico é “este”. Os pontos cardeais que aprendemos na escola são: norte, sul, este e oeste. Podem reduzir-se aos símbolos (iniciais): N, S, E e O. Contudo, correntemente, referimos o ponto “este” como “leste”. Porquê? É interessante saber que o termo vem do equivalente inglês “east”, através da designação francesa “est”. Não deixa de ser curioso constatar que a variante portuguesa “leste” tem origem no mesmo termo francês, mas com a incorporação do artigo definido (l’est). Assim, ao dizer “o leste”, o tal artigo emprega-se duas vezes: o português “o” e o francês com apóstrofo para evitar a repetição da vogal “e” (l’). Se foi por razões de comunicação auditiva que se passou a empregar “leste” em certas circunstâncias, seria importante compreender como aconteceu. Serão sempre equivalentes estas duas formas, sendo indiferente escolher uma delas? Será que os dicionários do tira-dúvidas têm alguma informação a este propósito? Todos os dicionários consultados registam “este” e “leste” como sinónimos. As duas referências brasileiras (AURÉLIO e HOUAISS) explicam a razão pela qual a Marinha usa sempre “o leste”. É para não confundir “o este” com “oeste”. Radicará aqui este emprego que se foi expandindo. Com o uso, passou a designar uma área geográfica “a europa do Leste” e aí usa-se a maiúscula (cf. MACHADO). A variante com “l” ainda deu nome ao vento que vem desse ponto cardeal. Portanto, ganhou um valor diferente de “este”. Assim, se, em diversos contextos, é indiferente empregar uma ou outra, em muitos outros, já não o será. Já sabemos que é fácil o que se entende e complexo, ou discutível, o contrário. Portanto, para um provável tira-teimas, nada melhor que um breve tira-dúvidas porque as dúvidas são o primeiro passo, mas não podem ser o último. Podemos usar “o este” e “o leste” como sinónimos? Porquê? Sim, podemos porque se tornaram equivalentes para mencionar o ponto cardeal. Contudo, a opção “leste”, que tende a evitar mal-entendidos, passou a identificar pelo menos duas realidades bem concretas. Por um lado, representa um determinado tipo de vento e uma situação atmosférica específica que ouvi mencionada em Cabo Verde e que se reencontra no Arquipélago da Madeira (cf. ACADEMIA e PRIBERAM). Por outro, nomeia uma área geográfica: o Leste. Assim, um erro linguístico (o leste: com duplicação do artigo) está na base de um uso desviante, que se quis, propositadamente, afastar da norma para clarificação da mensagem a transmitir. Todavia, não é “leste” mais poético do que “este” porque vão conquistando espaços semânticos diversos, não sendo já integralmente sinónimos. Uma poesia poderia jogar com “o leste” e “o este”, diferenciando-os. Ao folhear o livro de José Agostinho Baptista, dou-me conta que é o “sul” que parece prevalecer. As flores também vão marcando presença. A poesia sente-se e dificilmente se explica, embora os académicos procurem razões para tudo. A poesia é vida, mesmo quando feita de morte, sopre o vento de onde quiser.